domingo, 24 de junho de 2012

Por que “nóis erra” a gramática


Luís Antônio Giron 

Época - 24/05/2011
Os meios de comunicação abriram espaço para debater um livro didático que supostamente traria “erros de português”. Trata-se de Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, que reúne uma série de textos de linguistas e professores de português. O compêndio foi aprovado pelo Ministério da Educação, aplicado em escolas e usado por meio milhão de estudantes do ensino fundamental e médio em todo o território do Brasil. A obra ganhou fama porque tenta explicar as diferenças entre a norma culta e o linguajar cotidiano, e exemplificava as ocorrências do registro coloquial com orações como “nós pega os peixe” ou “nós vai à roça”. Esse tipo de abordagem, segundo muitos âncoras de rádio e TV, desinformaria as crianças em vez de educá-las. Segundo eles, é preciso ensinar o “português correto” aos estudantes, para que eles possam crescer dotados com mais cultura e mais utilidade social. Permitam-me fazer deles as suas palavras...
Curiosamente, no meio da tentativa de criar polêmica, esses paladinos do idioma cometeram uma série daquilo que eles próprios consideram “erros de português”. Não pretendo enumerar as besteiras pronunciadas, até porque considero serem ocorrências normais na língua cotidiana falada, inclusive nos meios de comunicação. Mas ouvi muita bobagem, e muita discussão entre gente graúda irritou-me pelo mesmo motivo que estavam discutindo: a ignorância em relação ao assunto com que lidavam: a língua.
Sem muito alarde, os polemistas instantâneos foram baixando a voz – e desapareceram. Como em denúncias que são alardeadas em manchetes e depois desmentidas em corpo minúsculo, a conversa murchou sem retratações. Muita gente só pegou os ecos dos bate-bocas, sem nem terá sabido do que se tratava na realidade. Mesmo assim, e por isso mesmo, vejo-me na obrigação gramática e moral de discutir o problema, elevando-o a um nível menos colérico.
Vou tentar desemaranhar os enganos. Antes de mais nada, é preciso examinar a questão da linguagem e do idioma de uma forma minimamente lógica. Peço um pouco de paciência, em nome da verdade. Vamos diferenciar gramática normativa e gramática descritiva.
A gramática normativa, aquela que rege as regras daquilo que é consagrado em termos de fala e escrita em uma determinada sociedade e nação, não tem foro de verdade absoluta. Ela não passa de uma disciplina sem fins científicos, uma espécie de enciclopédia das boas maneiras. Quem afirma isso não sou eu, mas o mais venerável gramático do Brasil, Evanildo Bechara, em sua Gramática escolar da língua portuguesa, que vem sendo publicada há décadas. Eu próprio estudei nela no ginásio, e a mantenho comigo para momentos graves como este.
Diz mestre Bechara: “Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social”. E segue: “A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade os escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos”. Por conseguinte, a gramática normativa não passa de um manual de etiqueta, ensinado às crianças ou aos analfabetos no início de sua formação. Os professores dizem aos pequenos que não devem dizer “nós vai à balada” assim como aconselham a não pôr o dedo no nariz ou produzir ruídos inconvenientes. Claro que é necessário ensinar os cidadãos a se comportar bem. Escrever e falar corretamente em qualquer língua é um pré-requisito para o crescimento profissional e o convívio socialmente aceitável. Quem fala ou escreve inadequadamente (ou, como dizem os polemistas, quem comete “erros de português”) é sumariamente execrado e excluído.
Ora, tal código de posturas do município do idioma vai de encontro (e não “ao encontro de”) ao que acontece entre os falantes de uma língua na realidade concreta. O que ocorre na língua em seus vários registros diz respeito à gramática descritiva, disciplina científica baseada nas pesquisas da linguística. Seu objetivo é examinar, descrever e fornecer uma teoria para o funcionamento fonético, fonológico, morfológico, sintático e lexicográfico de determinada língua. Por isso, estuda o que ocorre e o que ocorreu nos usos de um idioma, sincrônica e diacronicamente. Cito novamente Bechara: “Cabe tão-somente à gramática descritiva registrar como se diz numa língua funcional, numa determinada variedade que integra uma língua histórica: o português do Brasil; o português de Portugal; o português do século XVI ou do século XX; o português de uma comunidade urbana ou rural; o português de Eça de Querós ou de Machado de Assis, e assim por diante. Por ser de natureza científica, não está preocupada em estabelecer o que é certo e errado no nível do saber idiomático”.
Em outras palavras, a linguística anota e reconhece tudo o que é dito nos vários registros: o coloquial, o culto, o dialetal e até o idioletal, a fala particular. Sua missão não é emitir juízos de valor e distinguir o certo do errado. É mostrar que a língua consiste em um organismo dinâmico, que opera em vários níveis de fala. E que cada nível possui o seu código. O problema de usar um vocabulário de um registro em outro não é de erro, mas de inadequação. Nós se atrapaia, nóis comete erro. Assim cantavam a dupla caipira Tonico e Tinoco em suas letras de toadas singelas que tanto encantavam Guimarães Rosa. Assim Juó Bananère e Adoniran Barbosa alimentaram o folclore do bairro do Bexiga em São Paulo com italianismos tão inconvenientes como inesquecíveis. Assim cantaram os boiadeiros nordestinos em sextilhas e decassílabos. Os erros desses poetas populares são exemplares.
Ora, por que não apresentar aos estudantes do ensino médio a realidade da fala cotidiana cientificamente estudada É o que faz o compêndio Por uma vida melhor. O volume diferencia o registro popular da norma culta. Uma das passagens mais polêmicas da obra diz o seguinte: “Posso falar 'os livro'?' Claro que pode, mas dependendo da situação, a pessoa pode ser vítima de preconceito linguístico”. A começar pelos autores que fizeram a afirmação. Os professores que escreveram o livro, ora vejam só, foram vítimas do preconceito linguístico, que não deixa de se ser também um preconceito científico. É verdade: gritar um palavrão no campo de futebol quando o juiz comete uma injustiça tem aceitação social. Se, entre uma cerveja e outra, eu digo a meu tio: “Nóis não vai pescar neste fim de semana?” ninguém vai achar estranho, mesmo que eu seja um doutor da USP. Da mesma forma, falar palavrão ou dizer uma frase imprecisa em uma tribuna ou cátedra será abominado – salvo os políticos, que podem ser popularescos em suas falas no Congresso Nacional sem que nada lhes aconteça. Aliás, dá-lhes mais visibilidade. A imunidade parlamentar inclui a imunidade linguística...
Ao condenar as “falhas” do livro didático em questão, os donos da verdade cometeram um erro duplo de linguística: compreenderam a gramática normativa como uma verdade absoluta e condenaram quem não a segue. A postura raivosa não tem nada de respeitável. Ao contrário, só faz emergir prejulgamentos levianos. Cometeram um erro básico de interpretação.
Tudo isso me leva a pensar que grande parte da intelligentsia agiu ideologicamente ao abordar um assunto tão delicado. (E entre os intelectuais incluo nós, jornalistas, mesmo que muitos de nossos luminares da República considerem a profissão algo próximo à do cozinheiro, que, por sua vez, não deixam de ter evoluído intelectualmente nos últimos anos por causa da moda gastronômica.). Gente com diploma vistoso abandonou qualquer atitude minimamente científica para destilar o mais desavergonhado preconceito linguístico; leia-se: preconceito de classe. Desconfio de que a ascensão econômica e cultural das classes C e D andam assustando certos defensores de privilégios, inclusive os linguísticos. Talvez tenham medo de que os pobres (ou, na expressão deliciosamente forjada em São Paulo há pouco tempo, “a gente diferenciada) lhes usurpem as cátedras e os palanques. É outro problema que atinge o Brasil: até mesmo a plêiade que se arvora em autoridade é mal-educada, desinformada e, pior, mal-intencionada. A elite intelectual brasileira não tem “níver”.

Luís Antônio Giron, editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.

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